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Raimundo Nonato durante chamada de vídeo com o advogado André Francelino — Foto: André Francelino/Arquivo Pessoal

Aos 73 anos, o aposentado Raimundo Nonato Morais, morador de Ananás, no Bico do Papagaio, enfrenta um drama que compromete sua sobrevivência. Com apenas dois salários mínimos de renda mensal — uma aposentadoria e uma pensão do INSS — o idoso descobriu que há 92 empréstimos consignados em seu nome, a maioria deles feitos sem sua autorização. Segundo ele, o valor que sobra mal dá para se alimentar. “Tem mês que passo necessidade. Às vezes faço um serviço ou outro só para comprar algo para comer”, lamenta.

A descoberta veio em 2023, quando Raimundo procurou o advogado André Francelino de Moura, que identificou dezenas de contratos de empréstimos realizados indevidamente nos últimos 11 anos. De acordo com o advogado, os débitos não estão relacionados às polêmicas cobranças indevidas de associações nos benefícios do INSS, mas sim a operações fraudulentas de crédito.

Fraude disfarçada de renovação

Raimundo admite ter feito apenas dois empréstimos em 2012, para custear o tratamento de uma pneumonia. Um de R$ 1,2 mil e outro de R$ 3,4 mil. “Foi para pagar remédio. Se eu tivesse feito esse tanto de empréstimos, estaria era rico”, ironiza.

No entanto, esses dois contratos iniciais foram usados como ponto de partida para uma sequência de refinanciamentos, muitos deles quitados em poucos meses com novos empréstimos, sem que ele autorizasse. “Há contratos que previam 84 parcelas e foram encerrados em poucos meses, apenas para que novos fossem gerados”, explica André Francelino. Isso mantém o comprometimento da margem consignável sempre próximo ao limite de 30%, mesmo com valores baixos por parcela — alguns entre R$ 12 e R$ 220.

Atualmente, Raimundo tem 16 empréstimos ativos: sete atrelados à aposentadoria e nove à pensão, com descontos mensais de R$ 452,55 e R$ 384,95, respectivamente. “É todo tipo de banco que cobra, e nem sei se esses bancos existem”, desabafa o idoso, que vive sozinho há décadas e perdeu o contato com a filha há 14 anos. “Hoje tenho até uma companheira, mas é muito difícil.”

Processo parado na Justiça

Apesar da gravidade do caso, o processo judicial movido por Raimundo contra os bancos envolvidos está parado desde 2023. A suspensão é motivada por um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas instaurado pelo Tribunal de Justiça do Tocantins (TJ-TO), que decidiu pausar todos os processos movidos por analfabetos contra instituições financeiras sobre empréstimos consignados, por haver divergências de entendimento entre os juízes do Estado.

Isso significa que, enquanto a tese jurídica não for pacificada, Raimundo segue sem resposta da Justiça. Segundo o advogado, os bancos ainda não apresentaram defesa com detalhes dos contratos, nem se os valores dos supostos empréstimos chegaram à conta do idoso ou foram desviados para terceiros.

Como isso acontece?

De acordo com André Francelino, os correspondentes bancários — empresas ou pessoas que operam empréstimos em nome dos bancos — monitoram as margens disponíveis nos benefícios e atuam assim que há possibilidade de gerar uma nova dívida. “Eles fazem empréstimos de valor baixo, refinanciam, e mantêm a margem comprometida. Isso sem qualquer consentimento verdadeiro”, explica.

O que dizem os bancos

Federação Brasileira de Bancos (Febraban) informou que, desde 2019, mantém a Autorregulação do Consignado, criada junto com a Associação Brasileira de Bancos (ABBC), justamente para coibir práticas abusivas. Desde que as regras entraram em vigor, em 2020, foram aplicadas 1.465 sanções a correspondentes por irregularidades.

Além disso:

  • 113 empresas foram impedidas de atuar;
  • 4 empresas receberam suspensões ou advertências em maio de 2025;
  • 280 agentes de crédito receberam penalidades após reclamações de consumidores.

As multas aplicadas variam de R$ 45 mil a R$ 1 milhão.

Um problema que vai além de Raimundo

O caso do aposentado do Bico do Papagaio não é isolado. Milhares de beneficiários do INSS — especialmente idosos e analfabetos — são alvo de fraudes semelhantes em todo o país. Em comum, o acesso indevido aos dados do beneficiário, a ausência de controle eficiente pelas instituições financeiras, e a impunidade.

“Tem gente que vê a vida virar uma cadeia de dívidas que ela nunca pediu. É injusto, cruel e desumano”, afirma o advogado.

Enquanto aguarda a retomada do processo judicial, Raimundo sobrevive com muito pouco e a esperança de justiça. “Só quero viver com o que é meu de verdade”, finaliza.

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